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O Telefone

Uma chamada misteriosa, um desconhecido que sabe tudo sobre sua vida. Renan fez descobertas importantes através do telefone.

por Anderson Oliveira

Quarta-feira, 27 de Janeiro de 2021

Capítulo 1 – Bullying

Renan entrou no quarto chorando e fechou a porta. Jogou a mochila num canto, tirou o tênis e se jogou na cama. Puxou o lençol até cobrir a cabeça e se encolheu.

Sua mãe entrou apressada no quarto. Da cozinha ela o havia visto chegar.

– Renan, o que aconteceu hoje? – perguntou ela. – De novo, né?

Os soluços eram abafados pelo lençol. Ela se aproximou, sentando-se na beirada da cama e repousou a mão no ombro do filho. Ela sofria quando ele chegava assim da escola.

– Foi o Luís de novo? – perguntou ela e ficou esperando os soluços diminuírem.

Aguardou pacientemente e então ele respondeu:

– Foi...

Ela se levantou num pulo e caminhou batendo o pé até a sala. Era o ano de 1985 e os telefones eram analógicos. Tinha que girar um disco para fazer uma ligação e do quarto ele ouviu quando o aparelho foi puxado do gancho com violência e os números discados. REC! Tec, tec, tec, tec... REC! Tec, tec, tec, tec, tec... Cada REC! era puxado com força e quando alguém atendeu do outro lado, Renan conseguiu ouvir a mãe falar:

– Alô? Vera? – ela esperou alguém responder e depois: – Aqui é a Ana, mãe do Renan. Escuta aqui, você fala pro seu filho que se ele fizer isso de novo com o Renan eu vou direto na diretoria dessa vez, ouviu?

Esperou e depois falou quase gritando:

– Você sabe muito bem o que é! O Renan chegou chorando aqui em casa de novo por causa dele. Se você não sabe educar seu filho, quem vai dar uma surra nele sou eu!

Falou isso e bateu o telefone. Renan ouviu quando ela passou pelo seu quarto batendo forte os tamancos e foi direto para a cozinha terminar o almoço. Ele conhecia o temperamento da mãe só pelo som dos tamancos.

Ele nunca havia falado para a mãe que era gay, mas isso nem era necessário. Ela e todo mundo na escola sabiam. A diferença é que em casa ninguém tocava no assunto. Na escola ele era xingado o tempo todo de nomes horríveis.

Marica, bichinha, viadinho... Quando ele estava na primeira série chegou em casa perguntando para a mãe o que era “baitola”. A mãe perguntou quem tinha falado aquilo e ele só respondeu: “um menino na escola”. Ela não explicou, mas ele percebeu que os tamancos repercutiram furiosos pelo assoalho durante aquele dia.

O significado da palavra era o de menos. A forma como eram atiradas no seu rosto é que eram dolorosas. Ele sabia que era diferente dos outros meninos e essa diferença tinha vários nomes que anos depois, mesmo quando já adulto, soariam como facadas no estômago.

Renan tinha nove anos de idade, estava na quarta série e era o melhor aluno da sala. Na tarde do dia em que ele chegou chorando em casa aconteceu o primeiro contato.

Capítulo 2 – A voz

Depois do almoço sua mãe saiu para trabalhar. Ela dava aulas numa creche à tarde quase todos os dias. O pai ficava o dia inteiro na oficina mecânica. Seus dois irmãos mais velhos estavam na rua brincando.

Renan pegou o telefone para ligar para o 130. Era um serviço da companhia telefônica que informava a hora certa. Antigamente usava-se muito este número para saber que horas eram e ele gostava de ouvir a voz robótica.

Tirou o telefone do gancho, mas ele estava estranhamente mudo. Apertou e soltou o gancho novamente enquanto segurava o fone no ouvido, esperando ouvir o TUUUUUU de linha, mas nada.

Impaciente, bateu umas três ou quatro vezes no gancho com um dedo. Ouviu um estalo e depois um sinal de chamada, como se ele tivesse discado algum número.

– Alô? – disse uma voz de homem do outro lado.

Renan franziu o cenho. Não havia ligado para ninguém. Teria alguém ligado exatamente no momento em que ele batia no gancho?

– Quem é? – perguntou.

– Renan? – perguntou a voz do outro lado.

– Sim... – respondeu ele. Tirou o telefone da orelha, olhou para o aparelho como se assim fosse possível ver a pessoa do outro lado e o recolocou no ouvido. – Como você sabe meu nome? Quem tá falando?

– Oi, Renan. Tudo bem? – a voz sorria.

– Tudo...

– Você está triste hoje, né?

– Sim.

– Olha, eu sei tudo o que aconteceu. Você é um menino muito legal. Não liga pro que aquele bobo falou, tá?

Renan pensou um pouco. Depois respondeu:

– Ele disse que eu era mulherzinha.

– Você só tem um jeito diferente. Ser diferente não quer dizer que é ruim, é só um outro jeito de ser.

– Hmmmm... – fez ele e ficou calado. Depois acrescentou: – Quem é você?

– Pode me chamar de... Pepe. Pra você lembrar do desenho do Pepe Legal.

– É o meu desenho favorito...

– Eu sei.

Neste momento ele é surpreendido por alguém às suas costas:

– Com quem você tá falando?

Era Joaquim, o irmão de 13 anos. Renan levou um susto e recolocou o telefone no gancho.

– Ninguém – respondeu e em seguida: – Do que vocês tão brincando?

Capítulo 3 – Preparar, apontar...

No dia seguinte Renan passou pelo portão da escola pouco depois que o sinal havia tocado. Havia esperado do lado de fora para que as outras crianças já tivessem entrado em suas salas e evitar o encontro com Luís, o garoto que mais o perseguia.

Não adiantou muito. No intervalo, depois de comer a merenda, estava caminhando com a cabeça baixa para não falar com ninguém quando sentiu um empurrão nas costas. Ele deu dois passos pra frente e quase caiu.

– Sua mulherzinha, foi contar pra mamãe? – falou Luís. O menino era uns dois anos mais velho, mas bem mais alto que ele. Ao seu lado, dois outros meninos davam risada.

Renan se virou e saiu correndo para a sua sala enquanto os três garotos o xingavam de mais nomes horríveis.

– Se você contar de novo vou te dar uma surra, seu viadinho! – gritou Luís e os três riram.

Ele foi o primeiro a voltar do recreio, sentou na sua carteira, cruzou os braços e chorou.

***

Mais tarde, quando chegou em casa, não falou nada para a mãe. Fez sua lição a tarde toda trancado no quarto e depois pensou em ir brincar na rua. Ao passar pelo aparelho de telefone na sala ele parou.

Aproximou-se, retirou o fone da base e o aproximou do ouvido. Estava mudo. Bateu no gancho várias vezes como havia feito no dia anterior e começou a ouvir o tom de chamada.

– Alô – disse a mesma voz do dia anterior.

– Alô... – respondeu Renan devagar.

– Ele te xingou de novo, né?

– Sim... – respondeu ele. – Por que eles fazem isso?

A voz do outro lado demorou-se um pouco.

– Acho que é porque eles não te entendem... Mas eu te entendo.

– Hum...

– Renan, vou te falar o que você vai fazer amanhã – disse a voz. Pepe. – Amanhã você vai dar uma lição nele e ele nunca mais vai te xingar. Quer apostar?

– Duvido...

– Atrás da sua casa tem um monte de pedras. O seu pai tá fazendo uma reforma na varanda, então tem um monte de pedras lá.

– Tem mesmo... Como você sabe?

Pepe ignorou a pergunta e instruiu:

– Vai lá e pega uma pedra bem grande. Uma que encha a sua mão. Você vai esconder essa pedra embaixo da cama e amanhã cedo, antes de ir pra escola, você vai colocar ela no bolso da calça.

– Pra que?

– Quando o Luís te xingar amanhã, você vai estar preparado, entendeu?

– É pra eu jogar nele?

– Sim. Quando ele te xingar, você vai pegar essa pedra e jogar com toda a força bem na cara dele.

Renan arregalou os olhos e se animou.

– E ele não vai mais me xingar?

– Pode apostar. Nunca mais.

Renan estava tão animado que desligou o telefone sem se despedir de Pepe e foi procurar uma pedra no monte atrás da casa.

Capítulo 4 – Fogo!

No dia seguinte de manhã, Renan passou pelo portão da escola antes de o sinal bater. Caminhava sentindo o peso da pedra que carregava no bolso direito.

Passou pelo corredor principal, as salas da diretoria e dos professores de cada lado. Crianças corriam de um lado para o outro.

Depois do corredor ele entrou no pátio. As salas eram voltadas para o pátio e a maioria das crianças estavam ali brincando e conversando enquanto aguardavam o sinal.

Renan seguia na direção da sua sala quando ouviu:

– Ei, mulherzinha! Pra que andar rebolando assim? Viadinho!

Renan parou. Seu rosto ficou vermelho e ele encarou Luís, que agora estava com uns quatro de seus amigos. Encarou o menino, analisando o que faria em seguida. Colocou a mão direita no bolso, segurando e apertando com força a pedra. O toque lhe deu uma sensação de poder.

– O que foi? Perdeu a língua? Bichinha! – ele falou isso e começou a andar na sua direção.

Renan tirou a mão do bolso e atirou a pedra com toda a força. O moleque arregalou os olhos e a pedra irregular e cheia de pontas acertou em cheio o seu nariz.

Luís levou as duas mãos ao rosto, que imediatamente começou a sangrar. Ele caiu de joelhos gritando e quando olhou para baixo viu todo o uniforme sujo de vermelho e um rio de sangue que não parava de correr.

Renan ficou parado, olhando. Todas as outras crianças corriam assustadas e faziam um círculo em volta do menino, que não parava de berrar e chorar.

Capítulo 5 – Caiu a linha

A mãe do Renan teve que comparecer na diretoria e ele foi suspenso por uns dias. A mãe do Luís, dona Vera, foi bater lá para tirar satisfação e acabou quase saindo debaixo de vassoura. A mãe do Renan era uma leoa quando se tratava de defender seus filhos.

Renan ficou trancado no quarto ouvindo as duas discutirem. Foi uma discussão feia, mas ele estava feliz por ter feito o que fez. Afinal, Pepe estava certo.

Na semana seguinte, quando retornou à escola, Luís o evitava nos corredores. Nunca mais o xingou.

Uma tarde resolveu pegar de novo o aparelho de telefone. Fez do mesmo jeito. Bateu com o dedo várias vezes enquanto o aparelho estava mudo e a conexão foi feita.

– Eu falei pra você! – disse Pepe, a voz sorrindo de novo.

– Acho que agora as pessoas tem medo de mim – disse ele. – Mas eu prefiro assim.

Renan contou os detalhes e quando desligou, percebeu que seu irmão estava olhando atrás da porta.

– Com quem você tava falando de novo?

Renan ficou mudo. O irmão então disse:

– Vou contar pra mãe!

Capítulo 6 – Amigo invisível

À noite a mãe de Renan o chamou. Quando ela queria falar algo sério, o chamava para o quarto e trancava a porta.

– Renan, com quem você anda falando no telefone?

Ele apenas fitava os pés.

– Renan? Seu irmão me contou que você anda falando com alguém no telefone. Quem é?

– É um amigo, mãe.

– Que amigo?

Ele não respondeu, então ela continuou:

– Renan, o que ele fala pra você?

– Ele fala pra eu fazer coisas – disse ele e agora olhou para a mãe.

– Renan, ele pede pra você... Ele fala coisas que... – ela não sabia como continuar. – Ele fala palavrão pra você? Coisas feias?

– Não, mãe...

– Ele que ligou aqui em casa?

– Não. Eu peguei o telefone e ele tava lá. Não precisa discar nenhum número. O nome dele é Pepe.

– Pepe? Igual o desenho?

– Sim.

A mãe deu um suspiro de alívio. Era só o que faltava o menino agora ter um amigo invisível. Ela já tinha ouvido falar nestas coisas. O filho enfrentava sérios problemas para se relacionar com os colegas de escola.

– Ouça bem, querido. Os desenhos só passam na televisão, tá bom?

Ele fez que sim com a cabeça.

– Você promete que nunca mais vai falar com o... Pepe?

Ele balançou a cabeça de novo.

No mesmo dia apareceu um cadeado no telefone. O cadeado era inútil, era só apertar o gancho várias vezes e ele conseguiria falar com o Pepe. Mas ele não queria que sua mãe ficasse chateada, então simplesmente esqueceu seu amigo secreto.

Capítulo 7 – Cabra-cega

Aos 11 anos de idade, muito tempo depois que os xingamentos começaram, Renan finalmente descobriu o que eles significavam.

A brincadeira começou de forma ingênua. Seu primo Fabricio – ou Bito, como todos o chamavam – começou a aparecer nas horas em que a mãe de Renan não estava em casa. Ele era muito mais velho, já estava terminando o colegial. Sugeriu um dia que brincassem de “cabra-cega”.

Nesta brincadeira, uma criança tinha os olhos vendados. As outras se espalhavam pelo lugar, mas tinham que ficar paradas. Quando o jogo começava, a criança vendada tinha que sair procurando até encontrar alguém.

Aquela tarde, como só estavam ele e o primo, Bito sugeriu um jogo modificado. Quando alguém fosse encontrado, tinha que dizer em qual parte do corpo tinha esbarrado.

Os dois estavam sozinhos na sala e Renan de olhos vendados foi girando, girando até ficar tonto e não saber direito em que direção estava. Saiu tateando e procurando pelo primo.

Suas mãos encontraram algo. Com certeza era o primo que ele havia encontrado e agora tinha que adivinhar que parte do corpo era. Mexeu e remexeu sentindo algo quente e macio. Ele já sabia o que era, mas não falou.

Notou que o primo deu uma risada contida, mas continuou imóvel enquanto Renan bolinava suas partes íntimas por cima do calção. A brincadeira acabou logo porque o primo disse que ele estava demorando demais.

Depois que o primo foi embora, ele ficou pensando naquilo pelo restante do dia e da noite. Sentiu uma curiosidade, uma coceira no umbigo.

No dia seguinte o primo apareceu de novo e foi Renan quem sugeriu que brincassem de novo. Já não era mais uma brincadeira, era apenas um pretexto para o joguinho de exploração desse novo universo.

Renan foi vendado novamente e o encontrou tateando o ar. Dessa vez demorou-se mais mexendo na frente do calção do primo. O que estava dentro do calção ficou duro e ele perguntou:

– O que é isso?

– É você que tem que adivinhar.

– Mas eu não sei o que é.

– Passa mais a mão até você descobrir.

Renan estava demorando demais, então Bito disse:

– Peraí que vou ajudar você.

Quando Renan aproximou a mão novamente, não encostou mais no short. Encostou no membro do primo. Sentiu o umbigo coçar de novo, a barriga tremer e o rosto ficar vermelho.

– Ainda não sei o que é.

– Continua tentando.

Renan apertava um membro que era quente e tinha uma pele macia que dava pra deslizar. Era muito maior que o seu. E o mais estranho era que tinha muitos pelos. Ele podia sentir pelo toque. Não sabia que crescia pelos ali porque ele não tinha nenhum. Mesmo vendado, uma imagem mental surgia na sua cabeça.

– Faz assim – falou o primo e conduziu a mão de Renan num movimento para cima e para baixo.

Renan obedeceu e estava muito curioso para tirar a venda, mas aí a brincadeira teria chegado ao fim. Além disso ele não tinha coragem. Aquilo não era muito certo. Era o motivo dos diversos nomes que o chamavam.

– Quer ver sair leite? – perguntou Bito. Renan fez que sim com a cabeça.

Ele não fazia idéia do que o primo estava falando. Pouco depois, sentiu que um líquido viscoso e quente lambuzava toda a sua mão.

– O que é isso?

– Quando você crescer você vai saber – respondeu o primo e encerrou a brincadeira. Falou para ele se limpar e foi embora depressa.

Depois de uma semana, já que Bito não havia mais aparecido, Renan resolveu ir até a casa do primo, que era na mesma rua.

O primo estava na sala assistindo televisão sozinho e Renan se sentou.

– Vamos brincar de cabra-cega?

– To assistindo televisão.

– Amanhã então.

– Não vou mais brincar de cabra-cega, Renan. É errado. Não é mais pra fazer aquilo.

Renan ficou um tempo assistindo televisão com o primo e depois foi embora. Aquela brincadeira nunca mais aconteceu.

Capítulo 8 – Alan

Cinco anos depois Renan era um adolescente com muitas espinhas e poucos amigos. Na verdade, ele tinha só um amigo. Alan também era tímido e muito inteligente. Por ser negro, também sofria todos os tipos de perseguição na escola, assim como Renan. A diferença era que os colegas pareciam ser mais malvados com Alan e os nomes que lhe atiravam no rosto eram diferentes, mas igualmente cheios de espinhos.

Eles tinham a mesma idade e estudavam juntos desde a sétima série. Ele e a mãe vieram de mudança de outra cidade depois que o pai faleceu. Tornaram-se amigos imediatamente.

Alan sempre aparecia para jogarem Atari e muitas vezes dormia lá quando Renan alugava filmes de terror. Eles tinham muitos gostos em comum. Quando tocava Like a Virgin, da Madonna, os dois corriam para o rádio e ficavam ouvindo. Tentavam acompanhar as letras em inglês das músicas de Erasure e Pet Shop Boys. Eles tinham uma fita onde gravavam uma coletânea de músicas que tocavam no rádio. Às vezes a voz do locutor entrava na gravação, mas não tinha problema.

Renan gostava dele. Gostava além da amizade, mas nunca teria coragem de se declarar.

***

Um dia sua mãe chegou em casa com um novo aparelho de telefone. Veio toda contente, era um modelo sem fio, a grande novidade daquele tempo.

Instalou o novo aparelho, que agora precisava ser ligado a uma tomada para funcionar e guardou o antigo numa caixa.

Alguns dias depois pediu para que Renan guardasse o antigo aparelho no quartinho de tranqueiras que tinham nos fundos, uma construção separada da casa que um dia tinha sido um galinheiro. Renan foi até lá com a caixa e antes de colocá-la em cima de uma estante abarrotada de outras coisas abandonadas, abriu-a e viu o telefone. Lembrou-se da voz misteriosa com quem falara anos atrás. A voz que o havia ajudado. Pepe? Era esse o nome dele.

Retirou o aparelho, sentou-se num banquinho e o colocou no ouvido. Mudo, é claro. Lembrando-se de sua infância, apertou várias vezes o gancho.

Para sua surpresa escutou o tom de chamada. Tuuuuu... – pausa – Tuuuuuu... – estava chamando!

Renan se assustou, afastou o aparelho da orelha e um arrepio correu pelo seu corpo. Pegou o fio e foi acompanhando toda a extensão do cabo como se estivesse se certificando de que não estava conectado a alguma tomada.

Segurou a ponta desconectada do fio e ouviu um “Alô?” abafado. Olhou para o aparelho na mão e continou ouvindo: “Alô?”

Encostou o fone no ouvido.

– Renan? – ele reconheceu imediatamente a voz. Começou a tremer e ficou mudo. Queria jogar o aparelho longe, mas não conseguiu.

– Alô. Quem é? – perguntou Renan, mas ele já sabia a resposta.

– Pepe. Tudo bem? – disse a voz. Tinha o mesmo tom, o mesmo timbre.

– Oi, Pepe. Você não existe, mas oi – respondeu ele e depois riu. – Estou bem, e você?

Os dois conversaram por mais de meia hora e Renan contou tudo que havia acontecido nos últimos anos. Contou do novo amigo e contou da mãe que agora sempre andava doente.

Seu antigo amigo imaginário havia voltado.

Capítulo 9 – Descobertas

Parecia loucura, mas Renan sempre conversava com Pepe quando queria desabafar alguma coisa ou pedir algum conselho. Em um desses dias, Pepe lhe disse:

– Renan, preciso falar sobre sua mãe.

– O que tem minha mãe?

– Você confia em mim?

– Bom, você já deu provas suficientes de que posso confiar.

– Você precisa levar sua mãe para fazer uns exames. Ela não gosta de médico, mas você precisa fazer isso.

Renan acreditava em tudo que Pepe falava, então prometeu que faria isso o mais rápido possível.

***

A visita para o checkup de sua mãe aconteceu uma semana depois. Como ele já sabia que não ia adiantar tentar convencê-la, convenceu o pai, que a levou no Dr Mário, médico da família há muitos anos.

Os exames preliminares foram um pouco perturbadores e outros exames foram solicitados. Resultado: sua mãe estava com início de câncer de mama. Era para todos ficarem tranquilos porque estava na fase inicial e ela não corria nenhum risco.

– Como você sabia, Pepe? – perguntou Renan uma noite no escuro do quartinho, o velho telefone desconectado no colo.

– Acho que está na hora de você parar de perguntar “como”, não acha? Ela já está fazendo os tratamentos?

– Sim, o Dr Mário disse que foi sorte ter descoberto no início.

– Fico feliz por ela.

Renan suspirou e disse:

– Obrigado, Pepe, seja lá quem você for. Se você for um fantasma, acho que é um fantasma bom, pelo menos.

Pepe riu e perguntou:

– E o Alan?

– O que tem o Alan?

– Quando você vai se declarar pra ele?

Renan ficou encabulado.

– Nunca! – respondeu ele. – Pepe, ele não é... gay!

Pepe deu outra risada. Suspirou e disse:

– Renan, é claro que ele também é.

Desta vez Renan ficou mudo. Respirou e finalmente falou:

– Tem certeza? Ele não vai sair correndo e nunca mais voltar?

– Claro que não.

– Pepe, ele é lindo e forte. Zagueiro do time de futebol da escola. Todas as meninas se jogam em cima dele.

– Você já viu ELE se jogar nas meninas? – perguntou Pepe.

Renan pensou um pouco e respondeu:

– É... realmente nunca vi. Mas eu nem sou bonito...

– Você pode não se achar bonito, mas existem muitas belezas que não são refletidas no espelho. Já percebeu como vocês tem tantas coisas em comum? Já percebeu como você gosta das coisas nele que você não tem? E vice-versa? Vocês se encaixam. E quando não se encaixam, se completam.

– Acho que você tem alguma razão...

– E é melhor você fazer isso logo porque acho que a mãe está querendo se mudar para outra cidade de novo.

– Quando você diz “acho” eu tenho até medo – disse Renan e riu. – Obrigado, Pepe. Você parece sempre saber o que é certo.

Capítulo 10 – Tomando coragem

Era uma sexta-feira 13. Renan e Alan não perderam a oportunidade de correr na locadora e pegar uns três filmes de terror. Como sempre, Alan ficou para dormir e os dois passariam a noite vendo pelo menos dois filmes.

Renan já tinha uma TV no quarto nesta época e ele sempre colocava um colchão no chão para Alan dormir.

Quando terminaram “A Noite dos Mortos Vivos”, a casa já estava silenciosa e passava de meia-noite.

– Que meeeeeeedo – falou Alan encolhendo-se debaixo do lençol e cobrindo a cabeça. – Acho que vou ter que dormir aí na sua cama! Não vou conseguir fechar os olhos achando que uma mão apodrecida vai sair debaixo do armário e grudar no meu pescoço.

Renan olhou e respondeu:

– Pode vir se quiser – riu e completou: – Também tô me cagando de medo.

Alan só riu e ficou encolhido debaixo do cobertor. Fazia frio aquela noite.

– Não vai vir? Se você não vem, eu vou aí – disse Renan.

– Vem então – respondeu o amigo e Renan pulou da cama para o colchão de solteiro que tinha sido colocado no chão. Os dois começaram a rir, Renan forçando para entrar debaixo do cobertor também, mas Alan não deixava. Começou a fazer cócegas no amigo até que finalmente conseguiu.

Os créditos ainda estavam subindo na TV então mesmo debaixo do cobertor eles conseguiam ver o rosto um do outro. Ficaram rindo por um tempo, um olhando para o rosto do outro a poucos centímetros de distância. Renan se aproximou e beijou o amigo.

Para sua surpresa, foi imediatamente correspondido. O amigo devolveu o beijo e os dois se entrelaçaram meio sem jeito. Pararam para respirar.

– Você já fez isso? – perguntou Renan.

– Claro que não! – respondeu o amigo. – E você?

– Nunca. Mas estou adorando. Beija de novo?

***

No dia seguinte de manhã, depois que Alan já tinha ido embora, Renan correu para o quartinho para falar com Pepe. Ele estava radiante e Pepe perguntou:

– Deixa eu adivinhar. Você falou com o Alan.

– Não tem como esconder as coisas de você, né? – disse Renan rindo.

– Me conta logo. Vocês se beijaram?

– Ué. Achei que você sabia de tudo.

– Nem tudo. Conta logo – disse Pepe e tinha aquele sorriso na voz.

– Você tinha razão. A gente tava assistindo um filme e no final eu caí no colchão dele e dei um beijo. Pelo que aconteceu depois, acho que ele já estava querendo a mesma coisa fazia muito tempo.

– E vocês... você sabe... fizeram algo mais?

– Pepe! – disse Renan e deu risada. – Fizemos. Foi a primeira vez dele também.

– Então você perdeu a virgindade! Incrível!

Os dois riram e Renan disse:

– Obrigado, amigo. Você me ajudou tanto...

– Eu só falei as coisas que teria feito no seu lugar. Só isso.

– Você salvou minha mãe. Eu nunca acreditei em fantasmas nem nada, mas agora eu acredito em anjo. Você é meu anjo da guarda, não é?

– Anjo Pepe Legal. Gostei. Quem sabe...

Renan ficou sério, foi até a portinha do quartinho e olhou para fora para se certificar de que não vinha ninguém.

– Você precisa me ajudar com mais uma coisa.

– O que é agora? Quer saber quem vai comer quem da próxima vez?

– Seu idiota! – falou Renan rindo. – Não. Tô falando sério. O Alan disse que a mãe dele vai se mudar pra capital. Parece que mais uma vez você tinha razão.

– E o que você quer que eu faça? Não posso enviar raios cósmicos aqui do céu para impedir que ela faça isso.

– O Alan disse que eu poderia me mudar também. Eu estou querendo fazer faculdade, então seria uma forma de a gente... começar a namorar.

– E seu pai? Seu pai é contra essa idéia de faculdade. Ele quer que você trabalhe na oficina com ele. Em outras palavras, quer te transformar em macho alfa.

– Sim, é verdade.

Renan ouviu Pepe suspirar e aguardou mais um de seus preciosos conselhos.

– Posso pensar? – disse finalmente. – Me liga amanhã. Eu não posso te ligar, então você me liga amanhã de manhã, ok?

– Está bem. Obrigado, amigão!

Capítulo 9 – Pepe

O ano agora é 2025. Renan apertou um botão e a ligação terminou. Recostou-se na poltrona do laboratório de Física Quântica e olhou para o teto. Na mesa diante dele estava um antigo aparelho de telefone que era uma das relíquias que guardara por toda a vida. Deveria valer uma nota se fosse vendido para um museu, mas para ele o valor era inestimável.

Conectado ao aparelho havia diversos fios, como eletrodos, que seguiam até o SuperQubit, o supercomputador quântico da universidade. O computador ainda estava em desenvolvimento, mas os resultados iniciais tinham sido impressionantes.

A pesquisa mais recente provou a capacidade de se comunicar com o passado através de dispositivos de comunicação preexistentes. Para simplificar, era possível estabelecer uma comunicação através de um aparelho com ele mesmo no passado. E foi exatamente o que ele acabara de fazer. Ele – ou melhor, Pepe – tinha acabado de falar com ele mesmo em 1992.

Renan levantou-se para pegar uma xícara de café. Ele vinha testando a comunicação quântica há alguns dias e envolveu-se consigo mesmo.

Renan havia tomado muitas decisões erradas na vida. O excesso de bullying que ele sofreu na escola levou-o a tentar suicídio aos 12 anos. Tomou um gole de café e olhou para os pulsos onde as marcas indicavam o local que ele havia raspado com cacos de vidro.

Percebeu ao longo dos anos as mudanças no som dos tamancos de sua mãe, que ficaram apáticos, depois arrastados e finalmente se calaram quando ela não saiu mais da cama. Então seus tamancos se calaram para sempre. Ela foi vítima de um câncer no seio que poderia ter facilmente sido evitado com um simples exame.

A pressão do pai levara-o a casar-se com uma mulher quando ainda era muito novo. Foram muitas decisões erradas. Se ele pudesse viver tudo de novo com a cabeça que tinha hoje... Uma frase de George Bernard Shaw resume bem isso: “A juventude é uma coisa maravilhosa. Que pena desperdiçá-la em jovens”.

A maioria dos jovens toma decisões estúpidas. Começar a fumar ou usar drogas. Transar sem preservativo. Faltar àquela consulta de rotina no médico.

Deixar de dizer “eu te amo” para quem se ama, no momento certo. Renan está feliz que aquela outra versão de si mesmo em 1992 seja um pouco melhor.

O futuro não muda com alterações do passado, isso ficou comprovado nas pesquisas. Nada de loucuras como no filme “De Volta para o Futuro”, em que alterações no passado causavam uma confusão no futuro.

As pesquisas comprovaram que se abrem mundos paralelos. Aquela versão dele será completamente diferente e seguirá seu próprio destino. Aquele Renan ainda vai ouvir o som dos tamancos de sua mãe por muitos anos. E o que será de Renan e Alan? Ele não sabia porque ele próprio não tinha se declarado para o amigo, que partiu da cidade e eles nunca mais se viram. Sorriu e sentiu inveja do Renan com quem ele estava falando nos últimos dias.

Renan terminou o café e sentou-se diante do computador novamente. Tinha chegado a uma decisão. Olhou para o monitor do SuperQubit e sintonizou o contato para a data do dia seguinte no passado e apertou um botão. Aguardou.

Capítulo 10 – Adeus

– Alô? – falou sua antiga voz de adolescente.

Pepe ajustou os fones de ouvido e aumentou um pouco o volume com o mouse. Para a versão mais feliz dele mesmo, havia se passado mais um dia e já era o domingo. Para ele era só o tempo de tomar um café e pensar.

– Oi, Renan. Como você está hoje?

– Muito feliz. O Alan veio dormir aqui de novo e nós assistimos mais um filme.

– E namoraram mais um pouco, eu suponho.

Ele ouviu a própria risada jovial de quatro décadas atrás. Sentiu saudade daquela risada, pois era autêntica quando ele estava feliz.

– Sim, Pepe – disse ele. – E vou te confessar. Namoramos a noite inteira.

– Fico feliz por vocês.

– E então? Você pensou no assunto?

– Pensei sim – falou Pepe. – Eu acho que está na hora de você começar a tomar suas próprias decisões, Renan. Você mesmo precisa pensar no seu futuro. Se tomar a decisão errada, faça de tudo para corrigir o erro o quanto antes.

– Mas Pepe, você sempre me deu os melhores conselhos.

– Mas são conselhos de uma pessoa que já viveu muitas coisas. Você precisa agora cometer seus próprios erros e com o tempo vai aprender com eles. Os erros nos ensinam muitas coisas, Renan.

Renan suspirou e ficou calado. Pepe continuou:

– Eu sei que você vai tomar a decisão correta. Até acho que sei o que vai fazer, mas prefiro que você reflita sozinho – disse ele e a voz embargou.

– Parece até que você está se despedindo – falou Renan.

– Na verdade esta é nossa última conversa. Quando você terminar, peço que pegue a marreta do seu pai que está encostada ao lado do armário onde ele sempre deixa e quebre este aparelho de telefone. Sua mãe nem vai dar pela falta dele.

Renan ficou mudo por um tempo e depois disse:

– Muito obrigado por tudo, Pepe. Você foi o melhor amigo que eu já tive. Mesmo sendo um fantasma.

– Eu sei. Nós somos o melhor amigo de nós mesmos.

Renan talvez não tenha entendido esta parte. Apenas respondeu.

– Está bem. Espero que você fique bem, onde quer que você esteja aí no Além.

– OK, amigo – disse Pepe. Respirou fundo e disse: – Adeus.

A ligação foi interrompida e Pepe – melhor dizendo, Renan – começou a chorar diante de sua mesa de trabalho.

Desconectou todos os cabos que ligavam o SuperQubit ao antigo aparelho e levou a relíquia até a área de descarte. Jogou-o através da abertura do triturador e ficou observando enquanto era reduzido a pó.

– Agora você está livre, Renan. Viva uma vida melhor que a minha – disse ele em voz alta.

26-06-2024 às 15:16 Alberto
Parabéns pelo belíssimo conto. Profundamente inteligente, sensível e de bom gosto. Extremamente reflexivo, onde nos encontramos em muitos momentos com nossa própria história. Emocionado aqui...
12-12-2022 às 16:53 Maurício
Olha achei, fantástico, parte dele parecia uma pequena faze da minha própria vida...Foi bom lê algo fantasioso,mas que me fez relembrar minha infância e sentir que não fui o único que sofreu com a homofobia....
18-07-2022 às 20:40 Nelson
Que coisa mais linda. Estou emocionado. Obrigado.
22-04-2021 às 10:41 19cm Ceará
Por favor, continua o conto Garanhões da Fazenda, até hoje espero a continuação desse conto cara.
28-03-2021 às 02:19 Kaew
Como eu faço pra enviar meu conto??
26-03-2021 às 00:16 Zequinha
Quando mundo mais vais colocar outro conto
18-03-2021 às 00:18 Wc13
Fiz um conto para o Carlos Dantas! Espero a publicação! ;)
18-03-2021 às 00:14 Zequinha
Quando mundo mais vais colocar outro conto
06-03-2021 às 05:31 Cris
E isso tbm me fez perceber q por mais q seja apenas uma história, tem muitos garotos crianças q passam por isso caraa n tenho palavras... mt profundo 81 985978022 se sentir enterece chama la
06-03-2021 às 05:22 Cris
Cara parabens eu chorei de verdade pq ja passei por uma situação como essa e sei o quanto doi na vdd ate hj tenho as marcas do meu passado cravadas em mim parabens!! Conseguio tocar areas profundas dentro de mim... quero ler mais seus contos