por Redação MundoMais
Terça-feira, 24 de Setembro de 2013
É no pequeno e icônico teatro Satyros 1, na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, que somos convidados a mergulhar na complexa trajetória de Leo Moreira Sá . É ali que, aos 55 anos de idade, o transexual e ex-presidiário está em cartaz com a peça "Lou & Leo", em que conta sua história.
Nascido Lourdes Helena, ou Lou, na cidadezinha de São Simão (300 km da capital paulista), Leo se percebeu homem muito cedo. Não bastasse a inadequação ao sexo com que veio ao mundo, desde criança sofreu abusos do cunhado, marido de sua irmã. Deprimido, começou ainda na infância a ser tratado com um remédio antidepressivo controlado, de tarja preta.
Na década de 80, aos 20 e poucos anos, se mudou para a capital para cursar Ciências Sociais na USP. Só aí passou a se sentir fazendo parte de algo: entrou no grupo SOMOS, o primeiro de luta LGBT do país, e se juntou também à banda de punk rock feminina As Mercenárias.
O casal bizarro
A banda durou até o começo da década de 90, quando - ainda vivendo como Lou - abriu a balada Circus, onde conheceu a travesti Gabriela Bionda . Foi o início de um romance inesperado, condenado pela própria comunidade gay, que se referia à dupla como “o casal bizarro”. Mesmo assim o relacionamento durou dez anos, até Lou ser presa por tráfico de drogas.
Foi com Gabriela que Lou, que não tinha intenção de ser penetrada, descobriu a configuração sexual que mais a satisfez. "Foram três meses até termos a primeira relação sexual, um ano até eu comprar a primeira cinta peniana e ter o melhor sexo da minha vida", revela Leo. Com a prisão de Lou, Gabriela cumpriu o combinado: pegou tudo o que o casal tinha acumulado e sumiu, para nunca mais voltar.
Ao sair da cadeia, após cumprir cinco anos de sentença, Lou se tornou Leo. Era de novo um recomeçar, cheio de dificuldades e questionamentos. “E agora? Sou transexual, ex-presidiário, tenho 50 anos. Vou fazer o que?”, se pergunta ele, em cena da peça. Foi então a uma entrevista com o grupo teatral Os Satyros, que colhia depoimentos sobre transgêneros. Rodolfo Garcia Vazquez , um dos fundadores da companhia - que não o reconhecera apesar de ter convivido com ele na época da banda -, o convidou para trabalhar como iluminador no teatro
Catarse
Logo no primeiro trabalho no teatro Leo ganhou o prêmio Shell, dos mais importantes reconhecimentos do teatro, pela iluminação do espetáculo "Cabaret Stravaganza". Ali se aproximou de Nelson Baskerville , autor e diretor do sucesso “Luís Antônio Gabriela”, que retrata a vida de seu irmão travesti.
“Eu tinha há muitos anos um projeto de um livro sobre a minha vida, que sonho ainda terminar. Quando vi 'Luís Antônio Gabriela' pensei: ‘Minha vida pode ir pro palco’. Com a abertura do edital PROARC LGBT, consegui a verba para a montagem. Chamei o Nelson Baskerville para dirigir e ele topou de imediato”, conta Leo.
Veja cenas do espetáculo "Lou & Leo":
Baskerville é um ator conhecido no circuito do teatro e da TV, está com volta marcada para as novelas em breve, e sua obra biográfica fez grande sucesso e mostrou sua intimidade e delicadeza para tratar de assuntos referentes a questões que envolvem a sexualidade. “Eu não sou ativista, sou um artista, e mexer com a história do meu irmão resvalou no sentido artístico e social, na luta pela diversidade sexual", explica ele. "Quando o Leo me chamou, vi que ainda tinha coisas para assentar, um dever social de fazer uma arte social não chata.”
A dupla desenvolveu então a dramaturgia de "Lou & Leo", ensaiou por três meses e estreou a peça em 18 de junho. “Eu não tinha noção do quanto seria difícil falar de mim, reabrir aquelas feridas, reviver o sofrimento, mas fui até o fim, foi uma catarse”, relembra Leo.
Baskerville, que havia passado por um processo similar ao rever sua história familiar para realizar a montagem de "Luís Antônio Gabriela", o ajudou a se distanciar do sofrimento que as lembranças traziam. “Ele me falava: ‘Você não pode passar essa dor, tem que deixar o público sofrer por si só’. Eu tive que cuidar das minhas feridas, tive que ir sarando, e consegui em partes”.
"Por que vou deixar de ser a mulher que nunca fui para ser o homem que nunca serei?"
Leo, que iniciou o processo de adequação de gênero tomando hormônio e realizando uma mastectomia (retirada dos seios), não se submeteu à metoidioplastia (cirurgia para reposicionamento do clitóris aumentado por hormônio) e não se considera nem homem e nem mulher.
Não acredito em gênero, gosto de pessoas, homens e mulheres. A transexualidade me libertou, por que eu vou sair de uma caixinha para entrar em outra? Por que vou deixar de ser uma mulher que nunca fui para ser um homem que nunca vou ser?”, indaga Leo. Segundo ele, atualmente os homens tendem a se sentir mais atraídos por ele do que as mulheres.
Para ele, a visão de sexualidade e gênero tende a ser cada vez mais ampla, conforme pregavam autores como Simone de Beauvoir, Sartre e Foucault. “A gente vai ter que mexer na cabeça de todo mundo”. Diante da crueza com que expõe sua vida na peça, podemos afirmar que ele está fazendo a sua parte. Ainda dá para ver "Lou e Leo" hoje e amanhã em São Paulo.
Serviço:
Onde : Satyros 1, sala Ademar Guerra (70 lugares), Pr. Roosevelt, 214, tel. 3258-6345.
Horários : terças e quartas às 21h.
Ingressos : 30,00.
Bilheteria : aberta uma hora antes do espetáculo.
Duração : 50 min.
Classificação : 16 anos.
Temporada : até 25 de setembro.